Ivo
Miguel Barroso
I
Cantá-la-ei
na lua undécima, nocturna, suprema,
evaporando
ininterruptamente os seixos nocturnos.
Pela
sua boca, canto iluminuras, pérolas, guitarras solares.
No
odor a cedros, anuncio os seus dedos frágeis,
a
sua infinitude;
—
cabelos flutuando, boca dançarina,
os
botões da Primavera lembrando a “Kreutzer”
(Sonata
n.º 9 de Beethoven), “staccato”,
violino e piano, limite puro
—
a beleza eclodindo em seus gestos,
discursiva,
épica, derramando flores.
Proclamá-la-ei
em seu domínio leve,
numa
paleta de cores, entre violino e donzela:
um
tempo para cantar a sua brancura, ecos da sua harmonia
—
odes de água e silêncio.
Amo-a
fundamentalmente,
reproduzindo
o seu toque, a sua música,
as
palavras e o amor (prelúdio de uma fuga).
Amo-a
nas tempestades de areia, numa dança de fogo.
Ela,
violinista, princesa das águas, alumia a plenitude indecifrada;
eu,
poeta que canta o cobalto e as marés,
transcrevo
a madrugada
para ela, cisne branco, Nereide do silêncio.
Na
sua boca converge o sândalo,
como
se fosse o espelho do mar e a flor eterna do instante.
Relógios
amolecidos ditarão o absoluto,
desvendando
a lua incompleta, novíssima, a noite dual.
Beijá-la-ei
na ondulação do trigo (a água e os frutos resplandecendo).
Escreverei
o tempo novo,
desenharei,
nos seus cabelos, pássaros negros.
Dir-lhe-ei
os corais, o universo azul, todas as distâncias abolidas,
estrelas
marinhas e líquenes.
Segredar-lhe-ei
toda a alquimia, perfumes voláteis;
o
lume do olhar iluminando o seu rosto velado.
Amo
essa mulher, os seus olhos opulentos, elegíacos;
nas
suas mãos, perfumes de água,
numa
janela veneziana, ela ¾ a própria noite.
Amanhece
a sua carne e o seu silêncio.
Adivinho-a
em cada pétala,
como
se encontrasse o seu nome em cada aroma,
(permanece
intacto o seu enigma, a sua boca).
Amo
a sua delicadeza, a púrpura que incendeia as coisas.
Beijo
o seu olhar;
escrevo-a
na penumbra das aves, celebrando a sua música secreta
¾ o idílio de Siegfried e Brünnhilde ¾,
violetas
submarinas.
Inumeráveis
os cantos, os dedos, fragilmente.
O
seu nome é tâmara, um nome que não se conhece;
um
nome imperecível, coroado de diademas azuis.
Contemplo-a,
no seu idioma secreto, na estrutura do amanhecer
(sei
que o amor é primordial e antigo).
Cada
tempo tem a sua coloração,
numa
aprendizagem, nestas cidades,
irrompendo
as fronteiras.
Falo
a linguagem do mundo, densa e alquímica.
Nesses
universos cósmicos, sou múltiplo e diverso.
Não espalho o meu amor cantante.
— Amo-a secretamente.
II
Abrem-se sobre ela janelas,
cabelos negros, macios de
escuridão.
Procuro as suas faces
opulentas, as suas pálpebras vivas
que derramam poesia.
Amo-a,
arcaica, branca,
entre granitos, lírios
silvestres, catedrais de luminosidade.
Amo-a primordialmente,
temperada, morena.
Como desejaria a sua doçura,
o seu rosto, completamente;
beijá-la, ainda que
efemeramente, num minuto da sua luz.
Procuro
o seu rosto na multidão;
a
tudo ela se assemelha.
Quero
vê-la, protuberante, nítida, perfumada,
intacta,
sublime, móvel.
Algures,
fito o seu ágil andar, suaves acentos e aprumos;
ela,
escultura da manhã; o seu centro suave de silhueta leve.
Desvairado,
inebriado me arrebato, “amens amensque”.
Um
pedaço de mim mesmo desfalece,
decreta
o estado de sítio (o coração em desordem).
Finalmente
vejo a sua estrela na bruma,
— cabelos negros,
junto à boca.
III
“Never seek to tell thy love,
Love
that never told can be”
William Blake
Não
posso inebriar-me por tanta beleza.
Se
os meus olhos não tivessem vislumbrado o teu esplendor,
teria
amado a solidão, esse destino inerte.
Não
mo permitiram os deuses.
Nenhum
oásis olvida a tua presença;
a
incandescência dos olhos
impede-me
de extinguir a fonte originária da minha inquietude.
Mulher de água, de plenitude
inesperada,
como desejaria beijar,
longa,
perene e delicadamente,
teus
cabelos singularíssimos, compactos, homogéneos.
(Há
tanta coisa que não conheço).
Beijar
teus cabelos seria morrer na harmonia da tua luz.
Meus
olhos amam-te inexoravelmente,
nas
tuas ancas azuis dos teus jardins vedados.
Ao
longe, morrem de amor os ramos[2],
pelo
caminho transtornado da tua delicadeza.
Debalde peço a esses ramos:
— Ide dizer-lhe quanto a amo.
Quão
longe poderia eu assim amar-te.
Diria
a razão, o número das tuas pétalas.
Escrevo
os caminhos eternos. Sou o silêncio e a voz.
Oculto-me — sou secreto.
Via-te,
aprumada e glamorosa,
no
pólo oposto, junto aos apanhadores de borboletas
(Concerto para violino de Brahms, Opus 77).
As
margens do caminho eram invadidas por palmeiras interiores.
E
em pleno nada o tempo não se expandia
—
a essência sempre parca de neve e rosa.
De
vez em quando, comia rebuçados de papel
(a
sua prata era viva).
Os
violinos fragmentados eram as sombras dissolvidas,
cimitarras
bárbaras, num êxtase asfixiante.
Queria
revolucionar a estática imagem, a perenidade dos lábios.
Só
me coube a estrutura espelhada do verso
¾
o nó que constrói silêncios.
IV
com um só dos teus olhares”
Cântico dos Cânticos, 4: 9
Tu
vieste com beleza e harpas, nocturna e soberana
(a
lua era a tua voz).
Procurara
por todo o lado, mas não vira nada tão doce como tu.
As
tuas pálpebras eram a música por que ansiava; fruía a tua génese.
Em
ti amava a brancura, nua e desfeita, os
olhos secretos e luminosos.
Eras nascente viva em que mergulhava as minhas mãos;
via,
sem te ver, a tua imagem e transparência;
—
a delicadeza eras tu, noiva da beleza.
Música
e essência, tu surges sempre com vinho e harpas;
—
para ti ardem casas, nuvens, flores.
Devo
assinalar-te nesses cálices de doçura:
Como
és bela e pura, serena como a brisa,
volátil
e translúcida.
Ouves
a canção das borboletas? É a tua face.
És
graciosa como a palmeira delicada, saborosa e una
(para
ti me ergo em pedaços de jade).
És
um cisne, uma ânfora esguia de mel;
pronuncias cada sílaba
docemente.
Contigo trazes a flor e o
trigo, no esplendor da tua voz.
Não há carne ou luz onde não
esteja sorrindo o teu instante.
O
mundo acorda a um beijo teu,
pelo caminho transfigurado da
tua leveza.
Vejo-te
em todos os vislumbres da perfeição.
Estás
em mim, no meu corpo.
Cada
dia reinvento os teus olhos intermináveis;
elejo-te
continuamente,
soletro
o teu nome, rememoro a brancura repartida.
És
omnipresente;
estás
em tudo o que sinto ou toco;
alumias
a interpretação das coisas.
Celebro-te,
inaugural, nas flores da simbiose.
Amanhecente
da tua suavidade, do teu encantamento,
transformado
pela tua leveza,
bebo-te
baga a baga, no perfume das giestas.
—
A tua carne é a carne do poema.
Que
a tua flor seja a minha flor,
que
os teus lábios sejam os meus lábios;
que
o meu cálice seja o teu e que a tua noite seja a minha noite.
O
tempo abre-se para nós, nas nossas mãos.
Eu
amo-te nesse cântico sagrado de espuma,
nas metáforas exuberantes do
silêncio.
A
tua voz é o oásis de mim, a luz e o fruto
onde
as magnólias se desprendem.
O teu corpo, feito de alegria
e veludo,
é um poder leve, de estrelas
e iodo;
teus
cabelos, macios como seda marinha.
Pérolas são teus olhos,
monólogos de alegria.
Renasces em mim perenemente.
És sempre tão nova e pura...
O ouro incendeia-se na tua
face amendoada
(a minha amada é preciosa).
Feita da matéria nocturna e
da matéria delicada,
das pétalas alegres de
veludo,
és manufacturada e triste.
Adquires
o corpo, as suas núpcias,
esse
êxtase inefável e suave,
de
que as palavras e cada gesto do viver se alimentam.
Beijo-te imaginariamente,
apartas-me subitamente da melancolia.
Cativados
pelos cabelos que anoitecem,
deveras
os meus olhos te amam.
Tal
como o éter é rasgado pela tempestade
—
assim eu te amo.
A felicidade és tu;
a
felicidade é ver o teu sorriso aberto e manuscrito
(como
ecoasse o Concerto para piano e orquestra de Schumann,
terceiro
andamento, e o grande amor por Clara Wieck).
Contigo,
todos os céus e todas as estrelas brilham como outrora;
o
dia torna-se mais claro e translúcido.
A
teu lado, todas as coisas, deste e de todos os mundos,
são
ditosas e diferentes.
As horas, contigo, são
nenúfares mágicos e absolutos.
E
os teus olhos são pétalas que se abrem, como borboletas azuis.
Oh,
amada pérola, quão estimada és para mim!
Devo
consagrar-te nesse poema aquático,
devo
segredar-te a inalienável doçura.
E
invoco para ti os pássaros, a flor do livro;
descerras
para mim as pálpebras e tocas um interlúdio.
Resplandecem
os frutos na tua boca
e é neles que pousa o meu
coração.
Em ti, a chama.
Em mim,
a morte e a alegria.
Ivo Miguel Barroso
[1] Publicado na colectânea “Afectos – amor”, Labirinto, Fafe,
2008 (1.º parte); “100 poemas para Albano Martins”, coordenação de MARIA DO
SAMEIRO BARROSO, Labirinto, Fafe, 2012, pg. 70 (segunda parte); “Antologia de Poesia Contemporânea. Entre o sono e o sonho”,
volume III, selecção e organização de Gonçalo Nuno Martins, Chiado Editora,
Lisboa, 2012, pgs. 222-225 (4.ª parte). Em curso de publicação completa, in
Revista “Foro das Letras”, da Associação Portuguesa de Escritores Juristas,
Lisboa, 2012.
[2] Cfr. verso de Federico
García Lorca:“se mueren de amor los ramos”.
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