21 agosto 2012

"O Acordo Ortográfico é inconstitucional", Entrevista de Ivo Miguel Barroso ao semanário "O Diabo", 14 de Agosto de 2012, p. 7


Entrevista feita pelo Director, Dr. DUARTE BRANQUINHO

http://issuu.com/roquedias/docs/imb_o_diabo_14ago2012?mode=window&pageNumber=1
(contém ligeiras alterações em relação à versão impressa)


1. Porque é que o AO é inconstitucional?
Sucintamente: 1. Registam-se inconstitucionalidades orgânicas e formais das normas constantes da Resolução do Conselho de Ministros (CM) n.º 8/2011, um regulamento independente emitido “a descoberto”, que viola a reserva de competência da AR, e que não cumpre a forma, exigida pela Constituição, de decreto regulamentar. 2. A ortografia da Constituição, grafada na variante do português europeu, não pode ser alterada através de um acto hierarquicamente inferior, como o AO. 3. Inconstitucionalidades materiais: a violação do património cultural imaterial da língua portuguesa; da proibição do dirigismo estatal da cultura (art. 43.º, n.º 2); as restrições impostas, não autorizadas pela Constituição e não cumprindo os demais requisitos materiais das leis restritivas; a violação da identidade nacional e de direitos, liberdades e garantias, como as liberdades de expressão, de aprender e de ensinar, de criação artística e cultural, de imprensa, etc.
O AO e os actos que o implementam debilitam a força normativa da Constituição.

2. É essa a base da queixa que apresentou na Provedoria de Justiça?

Sim. Há também problemas de ilegalidade “sui generis”, devido ao facto de o tratado solene AO ser violado pelo “Lince” e pelos correctores ortográficos (não deixando que as palavras, enumeradas a título exemplificativo, na Base IV, n.1, c), sejam grafadas com consoante “c” ou “p”, diversamente do que essa norma do AO prevê). Qualquer tribunal dará razão em relação a este ponto. Invocar isto é suficiente para que qualquer pessoa desobedeça ao AO.
Quanto à legitimidade, existe uma usurpação, por parte do Direito positivo, da regulação, predominantemente costumeira, da língua portuguesa.

3. Acha que vai surtir efeito?

O objectivo é que o Senhor Provedor de Justiça requeira a fiscalização abstracta da constitucionalidade das normas do AO, da Resolução do CM 8/2011, de uma da Resolução da AR que ratificou o 2.º Protocolo do AO (e de duas Resoluções dos órgãos da Região Autónoma dos Açores).
Tenho confiança em que os mecanismos do Estado de Direito funcionem.
A Provedoria de Justiça tem juristas muito qualificados e competentes.
O Tribunal Constitucional, apesar de muito qualificado, começou a aplicar o AO; a meu ver, com o devido respeito, incorrectamente. É certo que o n.º 2 da Resolução do Governo prevê a aplicação do AO a actos publicados no Diário da República. Todavia, essa norma do regulamento administrativo é organicamente inconstitucional, pois nunca poderia regular outras funções do Estado (a jurisdicional, a legislativa ou a política), padecendo do vício de usurpação de poderes.
Os tribunais, em geral, não são abrangidos pelo n.º 1 daquele regulamento do Governo, que antecipou o fim do prazo de transição (apenas para a Administração Pública), pelo que não deveriam aplicar o AO (o exposto vale também para a AR e para o PR).


4. Mas o que o move contra o AO não é apenas uma questão jurídica...
Como jurista, as questões de inconstitucionalidade estão sempre primeiro do que os problemas de demérito do AO (aqui, os problemas, tratados pelos linguistas, são muito graves).

5. O AO é prejudicial para Portugal e para a Língua portuguesa?

O AO corrompe aspectos nevrálgicos da língua portuguesa no seu todo (e não apenas da variante do português europeu). Fá-lo, designadamente, através das “facultatividades”, que destroem o conceito normativo de ortografia e que, na verdade, acabam por ser o reconhecimento de que o AO não atinge o objectivo da propalada unificação.

6. Como professor, como comenta as diferentes recepções do AO nas Universidades?

As Universidades fazem parte da Administração do Estado, estando, por isso, abrangidas pelo n.º 1 da Resolução do CM. Ainda não houve uma rejeição “oficial” generalizada, pois ainda não houve consciência das inconstitucionalidades mencionadas.

7. As Universidades podem desempenhar um papel importante na recusa do AO?

Sim, pois o AO viola a autonomia universitária, designadamente nas vertentes científica, pedagógica e administrativa (art. 76.º, n. 2); bem como a proibição de dirigismo estadual na educação (art. 43.º, n. 2).
A iniciativa "Desacordo Técnico", dos estudantes do IST, que conseguiram recusar a adopção do AO na respectiva Associação dos Estudantes, é excelente. Espero que tenha o efeito contagiante de as restantes AE’s, incluindo as liceais, repudiarem o AO, de preferência, na abertura das aulas, no início de Setembro.

8. Acha que a luta contra o AO é um combate perdido, como alguns afirmam?

Não, de todo. Penso exactamente o contrário.
Desde logo, esclareça-se que o prazo de transição termina somente em 17 de Setembro de 2016, e não em 2015.
O AO é um monumento de incompetência e ignorância (A. Emiliano); é desprovido de bases científicas minimamente credíveis, como todos os linguistas têm frisado e está à vista na aplicação prática. Ora, algo tão “torto” e nefasto não pode ser irreversível!
Todavia, não vai ser fácil. Terá de haver desaplicações constantes do AO, uma grande mobilização e empenhamento dos portugueses (v.g., assinando a ILC-AO).
Os órgãos e agentes da Administração têm o poder-dever de desaplicar as normas constantes do AO e da Resolução do CM.
Não existe dever de obediência por parte dos funcionários públicos (designadamente os professores das escolas), pois a violação de direitos, liberdades e garantias origina o desvalor da nulidade, que é manifesto. Deste modo, o não acatamento da Resolução do CM ou de ordens concretas não pode acarretar responsabilidade disciplinar.
A Administração sob vestes de Direito privado (RTP, etc.) nem sequer é abrangida pelo n.º 1 a Resolução do CM. Logo, essas entidades estão a aplicar o AO, desde logo, ilegalmente (com honrosa excepção do CCB).
Sugiro que as pessoas se informem sobre o AO e sobre os seus direitos (nos Grupos Anti-AO do Facebook; na imprensa, sobretudo na não acordizada, como este Jornal; nos pareceres técnicos, etc.), para não serem ludibriadas.
Sublinho este aspecto: os particulares gozam do direito de resistência (artigo 21.º da Constituição), do direito de objecção de consciência e do direito genérico de desobediência face a normas inconstitucionais.
Quanto às normas mais aberrantes do Acordo Ortográfico, como as “facultatividades”, em minha opinião, todos têm o dever fundamental de defesa do património cultural que é a língua portuguesa (art. 78.º, n. 1); pelo que têm de as rejeitar.
Não cumprir o AO é um acto de patriotismo. 




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